Noutro dia, estava afoita numa busca de informação que acrescentasse um trabalho crítico e acabei encontrando um artigo interessante que fazia referência a Gilbert Durand; daí, gostei tanto que deixei meu foco de pesquisa para procurar informações do referido autor e confesso que quase desisti, não conseguia encontrar nadinha sobre ele em nossa língua, mas uma grata surpresa aconteceu: encontrei uma página na net que descrevia melhor o trabalho de Gilbert Durand e para ajudar na divulgação, decidi trazer a esta página as informações encontradas e espero que tenha utilidade para vocês, leitores, como teve para mim. Boa leitura!
Gilbert Durand é relativamente conhecido do público universitário, tendo assinaláveis ligações a Portugal. Discípulo confesso do filósofo Gaston Bachelard (1884-1962) e da sua quadripartida teoria da imaginação simbólica e material, centrada nos elementos primordiais da cosmogonia de Empédocles (Terra, Água, Ar e Fogo); e influenciado também pelos trabalhos de Psicanálise do suíço C. G. Jung (1875-1961) e da sua teoria do inconsciente colectivo (reserva de imagens primordiais ou arquétipos), G. Durand propôs um inovador enfoque mitológico ou arquetípico da imaginação criadora, com reconhecidas aplicações no campo da estética e da crítica literárias. Na sua actuação sociológica e cultural, o ser humano é dotado de uma inquestionável faculdade simbolizadora. Por conseguinte, a criação artística e literária não deve ser concebida fora de uma Poética do Imaginário, que intepreta os símbolos e as imagens recorrentes como projecções in-conscientes dos arquétipos em que se configuram as profundezas do inconsciente colectivo. Neste contexto de uma perspectiva imagético-temática, deve-se a G. Durand uma notável e abarcante tentativa de classificação taxionómica das imagens do sistema antropológico, a partir dos arquétipos colectivos, agrupando-as em dois regimes (diurno e nocturno) e três reflexos dominantes (posição, digestivo e rítmico ou copulativo). Com esta perspectiva mitocrítica e este atlas antropológico da imaginação humana, e na esteira das aportações da Psicanálise, do Surrealismo e da fenomenologia bachelardiana, G. Durand procurava reagir contra a desvalorização ontológica da imagem e do imaginário, bem como contra os excessos formais do Estruturalismo dos anos 60 e 70.
No âmbito das "relações portuguesas" de G. Durand, destacaria alguns factos significativos: em 1981, este autor francês pronunciou uma série de conferências em Lisboa, depois reunidas em Livro (Mito, Símbolo e Mitologia). Dois anos depois do seu estudo sobre os Mitolusismos de Lima de Freitas, o Professor Gilbert Durand foi agraciado, em 1989, com o Doutoramento Honoris Causa, atribuído pela Universidade Nova de Lisboa. Nessa cerimónia académica, G. Durand foi apadrinhado pelo Prof. Helder Godinho e teve como orador o Prof. João Morais Barbosa. Os textos deste acto académico, nomeadamente a Oração de Sapiência do homenageado, foram publicados na Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 3 (1989), pp. 235-262, da referida instituição. Finalmente, em 1994, G. Durand apresentou uma comunicação intitulada O Imaginário, Lugar do "Entre Saberes", no I Congresso Internacional de Transdisciplinaridade, organizado na Universidade Internacional de Lisboa, texto recolhido neste livro que agora se apresenta (pp. 231-244). Deve-se ainda a Gilbert Durand o prefácio a uma outra obra de Lima de Freitas, recentemente falecido, intitulada 515 Le Lieu du Miroir (Art et Numérologie), publicada em Paris no ano de 1993, na "Bibliotèque de l'Hermetisme".
A obra agora publicada de G. Durand, Campos do Imaginário, é uma recolha de 14 trabalhos publicados entre 1953 e 1996, cronologicamente ordenados. Nas palavras prefaciais de Danièle Chauvin e de René Bourgeois, que organizaram esta obra para iniciar uma colecção intitulada "Ateliers de l'Imaginaire", esta publicação do mestre, fundador e animador do Centro de Pesquisa do Imaginário de Grenoble, apresenta-se como uma merecidíssima homenagem ao grande investigador do Imaginário da segunda metade do séc. XX. Ao mesmo tempo, dada a dificuldade de o leitor encontrar estes estudos, publicados originalmente em forma de artigo ou apresentados em forma de comunicação, esta obra transforma-se também numa preciosa referência para todos os interessados nesta perspectiva de abordagem do imaginário artístico-literário. Por fim, saliente-se o facto de a obra ser ainda enriquecida com a completa bibliografia activa de G. Durand, bem como com dois beves mas proveitosos índices (de noções e de nomes). Campos do Imaginário inicia-se com um estudo sobre a Psicanálise da Neve, de 1953, dedicado a G. Bachelard. De facto, em L'Eau et les Rêves, o seu mestre não tinha reflectido devidamente sobre o simbolismo das imagens da Neve. Reveladores do significativo leque de interesses de G. Durand, unificados pela perspectiva indagadora do Imaginário, seguem-se trabalhos sobre aspectos tão variados como: Mito e Poesia; As Categorias do Irracional, Prelúdio à Antropologia; O Universo do Símbolo; Perenidade, Derivações de Desgaste do Mito; O Social e o Mítico: para uma Tópica Sociológica; Método Arquetipológico: da Mitocrítica à Mitanálise; O Imaginário e o Funcionamento Social da Marginalização; Redundâncias Míticas e Renascimentos Históricos; Longínquo Atlântico e Próximo Telúrico, Imaginário Lusitano e Imaginário Brasileiro; Carta sobre os Dois Mitos Directores do Séc. XIX; Roger Bastide, os Longínquos e as Jumentas; ou Passo a Passo Mitocrítico.
É possível rastrear a significativa influência das investigações de G. Durand no campo da moderna crítica, teoria e estética literárias, como se pode constatar em vários trabalhos de síntese sobre a Teoria da Literatura contemporânea ou, mais concretamente, em estudos que abordam as múltiplas relações entre a Psicologia, a Psicanálise, o Imaginário e a Literatura. O leitor mais interessado encontra uma boa demonstração da relevância teórico-crítica das propostas de G. Durand na sistematização bibliográfica das páginas que acompanham o seu trabalho — Método arquetipológico: de la mitocrítica al mitoanálisis, in Congreso de Literatura (Hacia la Literatura Vasca), Madrid, 1989, pp. 87-97.
Em França, derivados ou paralelos aos estudos de G. Bachelard e G. Durant, e com maiores ou menores afinidades, citem-se os trabalhos relativamente conhecidos e influentes de Marcel Raymond, Albert Béguin, Georges Poulet, Jean-Pierre Richard, Jean Rousset, Charles Mauron ou Jean Burgos. Em Espanha, a Poética do Imaginário teve em António García Bérrio um dos seus principais intérpretes. Depois de, em 1985, ter publicado La Construcción Imaginaria en 'Cántico' de Jorge Guillén, em 1989, na sua conhecida Teoría de la Literatura (La Construcción del significado poético), este professor procura universais antropológicos como base da poeticidade, chegando aos conceitos de espacialidade e dos movimentos da imaginação humana. Em parceria com Mª Teresa Hernández Fernández, em 'Ut Pictura Poesis': Poética del Arte Visual, de 1988, García Bérrio aplica os regimes simbólicos da imaginação ao domínio das artes visuais. Também Isabel Paraíso, no seu manual El Comentario de Textos Poeticos, de 1988, aplica a teoria da imaginação simbólica de inspiração durandiana ao comentário de textos.
Em Portugal, o pensamento de G. Durand também não tem passado despercebido, embora não esteja ainda tão divulgado e potencializado quanto deveria. Neste contexto, e a título de rápido exemplo, merecem compreensível destaque as obras de dois professores universitários portugueses. Com efeito, as propostas hermenêuticas de G. Durand, bem como do seu mestre Gaston Bachelard, foram objecto de sistematização crítica por parte de João Mendes (professor da Univ. Católica, Braga), no Cap. 2 da sua Teoria Literária (Verbo, 1980, pp.11-48). Nestas propostas, encontrou este professor jesuíta o método crítico adequado para desenvolver uma pioneira e renovadora interpretação da História da Literatura Portuguesa, em inúmeros trabalhos sobre alguns dos seus mais representativos autores. Mais recentemente, também Helder Godinho (professor da Univ. Nova de Lisboa), um dos tradutores de obras de G. Durand para português, desenvolveu um importante trabalho de investigação, O Universo Imaginário de Vergílio Ferreira (1985), salientando e interpretando as raízes simbólicas e as imagens recorrentes da escrita ficcional do escritor. O trabalho foi apresentado originalmente como dissertação de Doutoramento, tendo a orientação directa de G. Durand.
Como vemos, foi longo, diversificado e heuristicamente enriquecedor o caminho percorrido desde as reflexões de C. G. Jung que, em 1930, se debruçava sobre as relações entre a Psicologia e a Literatura, no âmbito do renovador movimento da Ciência da Literatura alemã. A utopia da Ciência, herdada da cultura oitocentista, entrou em crise há muito tempo. Num momento em que, cada vez mais, se questionava a fundamentação da epistemologia científica, os seus métodos e conquistas, a sua objectividade e racionalidade, a própria oposição entre Ciência e Imagiário foi abalada por pensadores como G. Bachelard, que era um filósofo da Ciência. No novo paradigma epistemológico em que vivemos, já não faz sentido falar nas fronteiras rígidas e intransponíveis entre a pretensa objectividade das ciências da natureza e a irrecusável subjectividade das ciências do espírito. A metáfora e o símbolo invadiram o tradicional campo da Ciência, demonstra G. bachelard. É a hora ce reflectir sobre a a-racionalidade da Razão e sobre o imaginário da Ciência e da Cultura humanas.
Como sabemos, a riqueza pluricodificada do texto literário, concebido à luz de um sistema semiótico literário heterogéneo, pressupõe um leitor-modelo, teórica e metodologicamente apetrechado, sendo o método de G. Durand um dos mais ambiciosos e profundos de que pode (e deve) dispor. Portanto, aqui tem o leitor um livro para aprofundar esse conhecimento teórico-crítico no domínio particular das imagens e arquétipos recorrentes do Imaginário humano e literário. Felicitando o Instituto Piaget pelo sentido de oportunidade com que deu à estampa esta obra, resta-nos esperar que este interessante instrumento de trabalho, constituído pela recolha de investigações de G. Durand, possa contribuir para um aprofundamento da cativante perspectiva mitocrítica e, sobretudo, para o alargamento e fundamentação de uma actualizada Poética do Imaginário, por parte de alunos, professores e investigadores.
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* Gilbert Durand é o grande impulsionador da (impropriamente) chamada Escola de Genebra, e, sobretudo, do Centre de Recherches sur l'Imaginaire de Grenoble, criado em 1966. Como publicação periódica, animada por esta perspectiva de investigação antropológico-simbólica, está a revista Circé, que vem sendo publicada desde 1969.
A obra de G. Durand começa a desenvolver-se ainda na década de 50, com trabalhos como "Signification de l'enfance" (1951) ou "Psychanalise de la neige" (1953), e prolonga-se até aos nossos dias. Depois de outras investigações, a sua proposta de mitocrítica e de mitanálise afirma-se sobretudo com Les Structures Anthropologiques de l'Imaginaire. Introduction à l'Archétypologie Générale (1969). De seguida, aplicou a sua teoria num estudo sobre o romance de Stendhal, Le Décor Mytique de la Charteuse de Parme. Les Structures Figuratives du Roman Standhalien (1961). Mais recentemente, publicou ainda, entre outros estudos maiores, artigos e participações em congressos: Figures Mytiques et Visages de l'Œuvre. De la Mytocritique à la Mythanalyse (1979); L'Âme Tigrée (1980); e Beaux-Arts et Archétypes (1989). Nas págs. 261-273 do livro em apresentação, Campos do Imaginário, encontra o leitor uma Bibliografia cronológica da investigação de G. Durand, perfazendo um total de 270 trabalhos.
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