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segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

O Tempo e a Filosofia

por Desidério Murcho

Pensa-se por vezes que se deve abandonar o pensamento filosófico enquanto não houver métodos científicos apropriados para investigar tais temas. Há nesta perspectiva dois aspectos que merecem reflexão. Em primeiro lugar, trata-se de uma ideia filosófica e não científica. Isto é, não se poderá provar num laboratório, ou através de um cálculo matemático, que devemos abandonar o pensamento filosófico. A filosofia é irrecusável porque mesmo para a recusar é necessário argumentar filosoficamente, o que é auto-refutante. Compare-se com a recusa da astrologia, que não exige que se argumente astrologicamente; e imagine-se quão ridículo seria um argumento contra a astrologia baseado num mapa astral. Pode-se recusar a reflexão filosófica sobre temas particulares, com argumentos filosóficos particulares que mostrem que tais temas são insusceptíveis de reflexão séria, mas não se pode recusar a filosofia em bloco sem usar argumentos filosóficos, o que acarreta uma contradição óbvia. A filosofia é apenas o exercício da capacidade para o pensamento crítico sobre qualquer tema susceptível de ser pensado sistematicamente, mas insusceptível de tratamento científico. E saber que temas são susceptíveis de serem pensados sistematicamente já é um problema filosófico.

Em segundo lugar, esta ideia denuncia uma incapacidade para compreender a natureza da própria ciência. A ideia falsa é que a ciência é um conjunto de resultados que devemos dominar para depois completar. A realidade, contudo, é muito diferente. São as perguntas, muitas vezes filosóficas, que pressionam o aparecimento de métodos de resposta — não são os métodos de resposta que determinam tudo o que há para perguntar (apesar de os métodos de resposta nos permitirem descobrir novas perguntas e novos tipos de perguntas). Argumentar que uma dada pergunta deve ser abandonada só porque não temos de momento qualquer método para lhe responder taxativamente é o primeiro passo para o obscurantismo (e é surpreendente ver hoje cientistas a usar o argumento que no passado os poderes eclesiásticos usaram contra eles). Se este tipo de obscurantismo tivesse prevalecido, não existiria ciência. Pois os métodos científicos de resposta foram estimulados pelas perguntas filosóficas mais importantes, que o obscurantista quer silenciar. Um exemplo particularmente nítido é a pergunta dos filósofos pré-socráticos pela natureza última das coisas, que motivou métodos científicos que permitiram descobrir a existência de moléculas, átomos, electrões e quarks. Declarar tontos os filósofos pré-socráticos porque faziam a pergunta sem ter métodos experimentais adequados é não compreender que sem essa pergunta nunca os métodos para lhe responder teriam sido concebidos.

O reverso da medalha do cientismo é a aplicação acrítica de métodos filosóficos ou falsamente filosóficos a campos de estudo inapropriados. Alguém que se ponha a dissertar filosoficamente sobre a natureza dos electrões, da consciência ou dos genes sem ter em consideração o conhecimento científico relevante que temos sobre esses campos de estudo não pode ser levado a sério. Mas daqui, e da reflexão precedente, não se pode inferir que a filosofia é apenas um preâmbulo da ciência. Por um lado, muitos problemas da filosofia parecem insusceptíveis de um tratamento experimental ou matemático, por maiores desenvolvimentos que a ciência empírica e a matemática possam sofrer. É o que acontece relativamente aos problemas mais centrais da teoria do conhecimento, da metafísica e da ética, por exemplo. Por outro lado, mesmo naquelas áreas em que as ciências, empíricas ou formais, apresentam resultados importantes, subsistem vários problemas filosóficos em aberto. É o que acontece no caso do tempo.

Santo Agostinho (354–430) comentou que se ninguém lhe perguntar, sabe o que é o tempo, mas que fica sem saber explicar-se se lho perguntarem. Referir este comentário é um daqueles lugares-comuns que George Orwell (1903–50) nos incita a nunca repetir porque significam em geral que não se está a pensar. Efectivamente, nada há de especial em relação ao tempo, neste aspecto, ao contrário do que o comentário de Santo Agostinho pode fazer pensar. Em relação a muitas noções centrais estamos na situação de sabermos usá-las correctamente sem todavia sabermos articulá-las e explicá-las de forma sistemática e explícita. É o que acontece com as noções de tempo, espaço, bem, verdade, conhecimento, existência ou arte, entre muitas outras. Compreender estas noções de forma explícita, articulada e sistemática é uma das tarefas centrais da filosofia. Mas não se deve pensar que a ausência de compreensão explícita revela a ausência total de compreensão.

Os problemas filosóficos sobre o tempo pertencem às disciplinas da metafísica e da filosofia da física. A metafísica é a disciplina filosófica que estuda a natureza última da realidade, sendo a ontologia (que estuda que categorias de coisas há) uma província sua. Infelizmente, a palavra "metafísica" foi muito maltratada no séc. XX pelos positivistas lógicos, que usavam o termo mais ou menos como sinónimo de pseudociência ou misticismo; mas a metafísica não é nada disso. Entre os problemas estudados pela metafísica contam-se a natureza do tempo, de que nos ocuparemos aqui, a natureza dos universais (qual é a natureza da brancura, aquilo que as coisas brancas têm em comum?), a natureza da modalidade (o que faz uma afirmação como "A água é H2O" ser necessária?), a natureza da substância (qual é a natureza do que pode ter propriedades mas não pode ser propriedade de coisa alguma?), a natureza da causalidade, etc. A metafísica contrasta com a epistemologia (teoria do conhecimento), que estuda a natureza do conhecimento, e com a lógica, que estuda a inferência válida. Estas são as três disciplinas centrais da filosofia no sentido em que todas as outras abordam problemas epistemológicos, metafísicos ou lógicos, em áreas delimitadas.

Excerto retirado do capítulo "O Tempo e a Filosofia", incluído no livro Tempo e Ciência, org. por Rui Fausto e Rita Marmoto (Lisboa: Gradiva, 2006).

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