Prazer, sou deprimida
A frase não é tão irônica quanto parece. A depressão, que muitos analistas e sociólogos consideram o sintoma mais expressivo das contradições sociais do século XXI, tornou-se, com o aval da ciência, uma prótese de identidade para os sujeitos perdidos entre as referências voláteis do mundo contemporâneo.
Por isso mesmo, é uma doença com enorme potencial de mercado. Se os deprimidos incomodam por sua inapetência para a grande festa do consumo que anima a vida social no mundo industrializado, seu apetite por novas medicações vem alavancando as vendas da indústria farmacêutica, que crescem em torno de 22% ao ano no Brasil, e movimentam anualmente US$ 320 milhões de dólares.
Do ponto de vista da psicanálise, a depressão resulta do empobrecimento da vida psíquica, sobretudo no que se refere à possibilidade de enfrentamento de conflitos. O abuso de soluções medicamentosas acaba por ser cúmplice desse encolhimento subjetivo. Daí que o avanço mercadológico dos antidepressivos não corresponda a uma diminuição dos casos de depressão. Bem ao contrário: a supressão química do sujeito do inconsciente só faz aumentar o mal-estar. A introspecção, a tristeza, o recolhimento, a contemplação – a vida do espírito, enfim – são desvios que atrapalham o rendimento de uma vida cuja qualidade se mede por critérios de eficiência, competência e disponibilidade para a diversão.
Observa-se um estranho conluio entre a medicina e a doença: a auto-identificação do deprimido responde às novas estratégias de vendas dos laboratórios farmacêuticos. Folhetos explicativos, editados pelos laboratórios e pelo Ministério da Saúde, alertam para os perigos desse mal insidioso e orientam o leitor a detectar os primeiros sinais da doença, em listas de sintomas tão abrangentes que praticamente qualquer um pode se incluir nelas. A propaganda estimula o autodiagnóstico – a busca do medicamento é mera conseqüência.
O livro de Cátia Moraes arremeda esta estratégia. Admito, de boa-fé, que a autora não tenha escrito sob encomenda de nenhum fabricante de antidepressivos. Mas não faz diferença; o livro é uma peça publicitária. Escrito em estilo “pra cima”, recheado de expressões joviais que celebram as delícias da vida monitorada por antidepressivos, o texto alterna depoimentos triunfantes de consumidores de remédios com capítulos informativos ao estilo dos panfletos dos laboratórios farmacêuticos. A começar pela superficialidade: cinco páginas explicam o que é neurociência, dez páginas resumem o que são e como agem os antidepressivos, outras seis relatam os milagres da “eletroestimulação”, oito enumeram os “transtornos de humor ou afetivos” – as quais incluem praticamente todas as manifestações de dor psíquica –, e por aí vai.
O texto todo exala o entusiasmo dos convertidos. Os casos “clínicos” parecem inspirados nas antigas propagandas de fortificantes ou remédios para emagrecer, na base do “eu era assim/fiquei assim”. Como toda boa estratégia publicitária, a argumentação da autora não deixa de contemplar possíveis argumentos críticos. Noblesse oblige, a “psicoterapia” é recomendada como valor agregado ao tratamento medicamentoso, sem nenhuma consideração efetiva que relacione a depressão com o conflito inconsciente e o desejo. Para quê, afinal? Ao reduzir o sujeito a uma somatória de transtornos de comportamento, o desenvolvimento de medicamentos cada vez mais especializados, não só dispensou a psicanálise como tem provocado uma falência teórica no seio da própria psiquiatria, que abandonou a produção de teorias sobre as doenças mentais.
Maria Rita Kehl é psicanalista, autora de O tempo e o cão: a atualidade das depressões (Boitempo: em impressão), entre outros.
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